Tomás de Aquino - O pregador da razão e da prudência
Doutor da Igreja inverteu prioridades no pensamento medieval, dando ênfase ao mundo real e ao aprendizado pelo raciocínio.Mais sobre filosofia
Infográfico
Depois de oito séculos marcados por uma filosofia voltada para a resignação, a intuição e a revelação divina, a Idade Média cristã chegou a um ponto de tensão ideológica que levou à inversão quase total desses princípios. O personagem-chave da reviravolta foi São Tomás de Aquino (1224/5-1274), o grande nome da filosofia escolástica (leia quadro abaixo), cujo pensamento privilegiou a atividade, a razão e a vontade humana.
Numa época em que a Igreja ainda buscava em Santo Agostinho (354-430) e seus seguidores grande parte da sustentação doutrinária, Tomás de Aquino formulou um amplo sistema filosófico que conciliava a fé cristã com o pensamento do grego Aristóteles (384-322 a. C.) - algo que parecia impossível, até herético, para boa parte dos teólogos da época. Não se tratava apenas de adotar princípios opostos aos dos agostinianos - que se inspiravam no idealismo de Platão (427-347 a. C.) e não no realismo aristotélico - mas de trazer para dentro da Igreja um pensador que não concebia um Deus criador nem a vida após a morte.
A porção mais influente da obra de Aristóteles havia desaparecido das bibliotecas da Europa, embora tivesse sido preservada no Oriente Médio. Ela só começou a reaparecer no século 12, principalmente por meio de comentadores árabes, conquistando grande repercussão nos círculos intelectuais. As idéias de Aristóteles respondiam melhor aos novos tempos do que o neoplatonismo. Vivia-se o período final da Idade Média e a transição de uma sociedade agrária para um modo de produção mais orientado para as cidades e a atividade comercial. Avanços tecnológicos, principalmente relacionados aos instrumentos de trabalho, começavam a influir na vida das pessoas comuns e os trabalhadores urbanos se organizavam em corporações (guildas).

Valorização da matéria
Aristóteles, em sua obra, punha a razão e a investigação intelectual em primeiro plano. A realidade material era considerada a fonte primordial de conhecimento científico e mesmo de satisfação pessoal. "Tomás afirma que há no ser humano uma alma única, intrinsecamente unida ao corpo", diz Luiz Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. "Era uma ideia revolucionária para uma época marcada pelo espiritualismo de Santo Agostinho, que trazia consigo certo desprezo pela matéria."
Tomás de Aquino realizou um trabalho monumental numa vida relativamente curta. Sua obra mais importante, apesar de não concluída, é a Suma Teológica, na qual revê a teologia cristã sob a nova ótica, seguindo o princípio aristotélico de que cabe à razão ordenar e classificar o mundo para entendê-lo. Eis o princípio operacional do tomismo, como é chamada a filosofia inaugurada por Tomás de Aquino.
A relação entre razão e fé está no centro dos interesses do filósofo. Para ele, embora esteja subordinada à fé, a razão funciona por si mesma, segundo as próprias leis. Ou seja, o conhecimento não depende da fé nem da presença de uma verdade divina no interior do indivíduo, mas é um instrumento para se aproximar de Deus. "Segundo Tomás, a inteligência é uma potência espiritual", afirma Lauand.

Essência a desenvolver
De acordo com o filósofo, há dois tipos de conhecimento: o sensível, captado pelos sentidos, e o intelectivo, que se alcança pela razão. Pelo primeiro tipo, só se pode conhecer a realidade com a qual se tem contato direto. Pelo segundo, pode-se abstrair, agrupar, fazer relações e, finalmente, alcançar a essência das coisas, que é o objeto da ciência. O processo de abstração que vai da realidade concreta até a essência universal das coisas é um exemplo da dualidade entre ato e potência, princípio fundamental tanto para Aristóteles quanto para a filosofia escolástica.
Para extrair das coisas sua essência, é necessário transformar em ato algo que elas têm em potência. Disso se encarrega o que Tomás de Aquino chama de inteligência ativa - em complementação a uma inteligência passiva, com a qual cada um pode formar os próprios conceitos. A idéia, transportada para a educação, introduz um princípio pedagógico moderno e revolucionário para seu tempo: o de que o conhecimento é construído pelo estudante e não simplesmente transmitido pelo professor. "Tomás nos lega uma filosofia cuja característica principal é uma abertura para o conhecimento e para o aluno", diz Lauand.
Como o filósofo vê em todo ser a potência e o ato (apenas Deus está acima da dicotomia, sendo "ato puro"), a noção de transformação por meio do conhecimento é fundamental em sua teoria. Cada ser humano, segundo ele, tem uma essência particular, à espera de ser desenvolvida, e os instrumentos fundamentais para isso são a razão e a prudência - esse, para Tomás de Aquino, era o caminho da felicidade e também da conduta eticamente correta.
"A direção da vida é competência da pessoa e Tomás mostra que não há receitas para agir bem, porque a prudência versa sobre atos situados no aqui e agora", declara Lauand.

Cidades ganham importância e novas escolas
Com sua teoria do conhecimento, que "convoca" a vontade e a iniciativa de cada um na direção do aperfeiçoamento, São Tomás de Aquino legou à educação sobretudo a ideia de autodisciplina. Foi essa a marca do ensino cristão, que alcançaria sua máxima eficiência, em termos de doutrinação, com os jesuítas, já no século 16. Embora a obra de Tomás de Aquino apontasse para o auto-aprendizado, a idéia não foi abraçada pelas rígidas hierarquias da Igreja Católica. No período em que o filósofo viveu, a religião seguia sendo a principal fonte de instrução, como em toda a Idade Média. Sobreviviam as escolas monásticas em mosteiros afastados da cidade, que inicialmente visavam a formação de monges, mas depois também de leigos das classes proprietárias. Com o surgimento da economia mercantil nas cidades, aparecem também as escolas episcopais, urbanas, destinadas a formar o clero secular (aquele que participava da vida social) e leigos. A palavra latina schola ganhou, nessa época, o significado de centro de encontro e de estudos. Vem daí o adjetivo escolástico, relativo à filosofia da época.

Biografia
Tomás de Aquino nasceu em 1224 ou 1225 perto da cidade de Aquino, no reino da Sicília (hoje parte da Itália). Sua família era proprietária de um pequeno feudo e ligada politicamente ao imperador Frederico II. Tomás foi encaminhado ainda criança para o monastério de Monte Cassino, com o objetivo de seguir carreira religiosa. Nove anos depois, devido a um conflito entre o imperador e o papa, ele foi tirado do monastério e enviado para a Universidade de Nápoles, onde entrou em contato com a obra de Aristóteles. Pouco depois, decidiu juntar-se à ordem mendicante dos frades dominicanos. Quando seus superiores o enviaram para a Universidade de Paris, os pais do noviço chegaram a sequestrá-lo no caminho. Apesar de ter ficado um ano proibido de sair da propriedade da família, a vontade de Tomás prevaleceu e ele se mudou para Paris. O resto de sua vida se resumiu à atividade acadêmica, com uma interrupção de alguns anos para trabalhar como conselheiro da Cúria Papal, em Roma. Já perto do fim da vida, Tomás voltou à Universidade de Nápoles, para dar aula. Sua passagem pela Universidade de Paris foi marcada por polêmicas com outros pensadores. Morreu em 1274, na abadia de Fossanova (hoje centro da Itália). Foi canonizado em 1323 e nomeado "doutor da Igreja" em 1567.

Período exige abertura da igreja para o mundo
Reunião de acadêmicos na Universidade 
de Paris, mostrada em gravura medieval: 
discussões revolucionariam a ciência.
Tomás de Aquino é uma figura simbólica de seu tempo na medida em que representou como ninguém a tensão entre a tradição cristã medieval e a cultura que se formava no interior de uma nova sociedade. Uma das respostas da Igreja a uma necessidade crescente de abertura para o mundo real foi a criação das ordens mendicantes, que, sem bens, vivem da caridade, ao mesmo tempo que se voltam para o socorro dos doentes e miseráveis. As duas ordens mendicantes surgidas na época foram a dos franciscanos, fundada por São Francisco de Assis (1181/2-1226), e a dos dominicanos, por São Domingos de Gusmão (1170-1221). Tomás de Aquino se filiou aos dominicanos. Outra característica dessa fase histórica foi o nascimento das universidades, que se tornaram o centro das discussões teológicofilosóficas, em particular na Universidade de Paris, onde o pensador estudou e lecionou. O ensino nessas instituições se assentava na divisão de disciplinas entre trívio e quadrívio, sistema que remonta à Antigüidade clássica. O quadrívio, que corresponderia às atuais ciências exatas, agrupava aritmética, geometria, astronomia e música, e o trívio, aparentado à idéia de ciências humanas, reunia a gramática, a retórica e a dialética. As discussões do período, no entanto, em breve levariam a um questionamento dos conceitos científicos vigentes.

Para pensar
Tomás de Aquino ressaltou o valor da razão humana e de conhecer como ela funciona, a começar pela importância de ordenar para entender. Já pensou nisso ao planejar suas aulas? Tente avaliar o interesse de ligar os conteúdos, mesmo aqueles mais abstratos (como os da Matemática), a experiências concretas anteriores. Isso é sempre possível e recomendável ou há exceções?



Michel de Montaigne, o investigador de si mesmo
Interiorizar-se, duvidar e entrar em contato com outros costumes e pontos de vista são as recomendações do filósofo francês para uma boa formação.
O período histórico da Renascença estava em sua última fase quando o escritor francês Michel de Montaigne (1533-1592) chegou à vida adulta. O otimismo e a confiança nas possibilidades humanas já não eram os mesmos e a Europa se desestabilizava em consequência dos conflitos entre católicos e protestantes. Esse ambiente refletiu-se na produção do filósofo, marcada pela dúvida e pelo ceticismo. Seus Ensaios são leitura de cabeceira de um grande número de intelectuais contemporâneos, entre eles Claude Lévi-Strauss, Edgar Morin e Harold Bloom.
A obra, originalmente em três volumes, é, a rigor, a única de Montaigne - mais alguns escritos pessoais foram publicados depois de sua morte - e inaugurou um gênero literário. A palavra "ensaio" passou desde então a designar textos em torno de um assunto que vai sendo explorado por meio de tentativas (esse é o significado da palavra essais em francês), mas sem rigores de método. Muitas vezes, não chegam a nenhuma conclusão definitiva, mas convidam o leitor a considerar alguns pontos de vista. No caso de Montaigne, o gênero serve à perfeição ao propósito de contestar certezas absolutas.
Dois dos Ensaios tratam especificamente de educação: Do Pedantismo e Da Educação das Crianças. Neles está claro que o autor pertencia a uma classe emergente, a burguesia, e que se rebelava contra certos padrões de erudição e exibicionismo intelectual ligados à aristocracia. Montaigne assumia também o papel de crítico tanto dos excessos de abstração da filosofia escolástica da Idade Média - que ainda sobrevivia nas universidades - quanto da cultura livresca do humanismo renascentista.
Essas circunstâncias históricas não necessariamente limitam os argumentos do autor, que foi o primeiro a falar numa "cabeça bem-feita" (expressão que Morin escolheu para título de um de seus livros) como objetivo do ensino, em detrimento de uma "cabeça cheia". "Trabalhamos apenas para encher a memória, deixando o entendimento e a consciência vazias", escreveu. Saber articular conhecimentos, tirar conclusões, acostumar-se à aquisição e ao uso da informação - todas essas questões tão problematizadas pelos teóricos da educação de hoje em dia estão no cerne das preocupações de Montaigne. "Para ele, a verdadeira formação residia em saber procurar, duvidar, investigar e exercitar o que é inteiramente próprio de cada pessoa", diz Maria Cristina Theobaldo, professora da Universidade Federal de Mato Grosso.

"Que sei eu?"
O projeto intelectual do filósofo teve a finalidade de testar maneiras de pensar que escapassem do caminho da erudição e da aplicação de idéias alheias. Quando se recolheu para escrever os Ensaios, sua decisão era voltar-se para si mesmo e reconstruir a própria história por intermédio de temas escolhidos ao acaso. "Em Montaigne, o processo formativo coincide com o conhecimento de si, lançar-se nas experiências e tomar posição perante os acontecimentos da vida", informa Maria Cristina.
Ao mergulhar em assuntos tão díspares quanto a perseverança e os odores, o autor realizou investigações que misturam experiências de vida a conhecimentos adquiridos por todos os meios, dos formais (tratados e clássicos literários) aos informais (conversas, leituras ligeiras, lendas populares). A primeira pergunta é "que sei eu?", para começar com uma grande dúvida e não com uma grande certeza - nem mesmo a certeza de não saber nada. Como cronista, Montaigne invariavelmente se declara ignorante e inculto, embora seus ensaios estejam recheados de citações gregas e latinas - uma das muitas contradições propositais que os tornam tão ricos.
Leitor devoto da tradição filosófica cética, Montaigne foi partidário da idéia de que a razão por si mesma não garante a existência de nada nem sustenta argumento algum. O homem, para ele, não era o centro do universo, como queriam os renascentistas, mas um elemento ínfimo e ignorante de um todo misterioso e muito mais próximo dos animais e das plantas do que de Deus. A escrita amena e ponderada dos Ensaios muitas vezes impede que, numa primeira leitura, se perceba seu potencial demolidor - tanto que a obra só foi proibida pela Igreja mais de 80 anos após a morte do autor. Não que ele fosse ateu. Considerava-se cristão, mas não aceitava dogmas nem, sobretudo, a lógica que a religião costuma imputar aos desígnios divinos. Daí que só resta ao ser humano voltar-se para si, porque as únicas certezas que tem de antemão se referem aos limites do corpo e à inevitabilidade da morte. Sobre o mundo exterior, a melhor atitude é comportar-se sempre como um estrangeiro em seu primeiro dia numa terra estranha - pelo menos evitam-se as idéias preconcebidas e legitimadas apenas pela tradição.
Coerentemente com tais idéias, Montaigne chegou a uma concepção de ética que também difere muito das idéias estabelecidas em sua época sob a influência do platonismo e do cristianismo. Para o filósofo, os valores morais não podem ser objetivos e universais, mas dependem do sujeito e da situação em que ele se encontra.

Longe dos pais e perto da vida
O castelo onde Montaigne se isolou para 
escrever: introspecção pedagógica.
Para Montaigne, as crianças não devem ser educadas perto dos pais, porque sua afeição torna os filhos "demasiadamente relaxados" e isso não os prepara "para a aventura da vida". O objetivo principal da educação seria permitir à criança a formulação de julgamentos próprios sem ter que aceitar acriticamente as leituras que a escola recomenda. "No trabalho de transformar o que está nos livros em letra viva, o preceptor tem papel fundamental", diz Maria Cristina Theobaldo. A receita ideal para treinar a capacidade de análise é acostumar-se a considerar opiniões diferentes e acima de tudo conhecer culturas e experiências diversas daquelas a que o aluno se familiarizou. É o que Montaigne descreve como "atritar e polir nosso cérebro contra o de outros". O filósofo se rebelava contra a cobrança de memorização mecânica dos conteúdos ensinados aos alunos. "É prova de crueza e de indigestão regurgitar o alimento como foi engolido", escreveu. Segundo ele, as crianças devem aprender o quanto antes a filosofia, porque assim entram em contato com a necessidade de conhecer a prudência e a moderação. E também conhecer a si mesmos por meio da introspecção. O pensador relegava a segundo plano o ensino das Ciências, recomendando-o apenas aos que tivessem habilidade natural para ocupar-se dela profissionalmente. Já a História e a Literatura teriam função formadora mais ampla, inclusive do caráter.

Biografia
Michel de Montaigne nasceu em 1533 perto de Bordeaux, no sudoeste da França. Foi educado em casa e até os 6 anos só falava e entendia latim. Formou-se em Direito na Universidade de Toulouse e imediatamente ingressou na magistratura. Aos 24 anos, conheceu o escritor Étienne de la Boétie (1530-1563), com quem desenvolveu fortes laços de amizade. A morte de La Boétie causou um abalo emocional que o levou a começar a escrever. Em 1570, ele vendeu sua vaga no Parlamento (que na verdade tinha funções de tribunal) de Bordeaux, como era costume na época, e retirou-se da vida pública. Passou então a dedicar-se a escrever os Ensaios, que ele reelaborou e ampliou continuamente. Durante esse período, Montaigne alternou o recolhimento a seu castelo com idas a Paris para dar conselhos aos funcionários do reino sobre os conflitos religiosos. Em 1580, começou uma viagem de 15 meses por vários países da Europa. No ano seguinte, soube que havia sido escolhido prefeito de Bordeaux. Assumiu o cargo e manteve-o durante quatro anos. Morreu em 1592, em seu castelo, de uma inflamação nas amígdalas.

A sabedoria dos canibais
Tupinambás em ritual de antropofagia 
retratado por Théodore de Bry: Montaigne 
desafia o senso comum.
Em 1582, Nicolas Durand de Villegagnon, o líder da expedição naval que tentou fundar no Brasil a França Antártica, levou três caciques tupinambás à corte do rei Carlos IX. Montaigne estava presente e a visita originou o ensaio Dos Canibais. Em vez de manifestar horror aos costumes dos indígenas, como seria esperado de um intelectual católico, o pensador comparou-os aos europeus e concluiu que os supostos selvagens lhes eram superiores, graças à coerência com a própria cultura, à dignidade e ao senso de beleza. Os verdadeiros selvagens, segundo eles, eram os europeus, que estavam promovendo banhos de sangue não só em suas conquistas na América como nas guerras religiosas. Sobre o encontro com os tupinambás, Montaigne narra duas observações feitas pelos índios, uma sobre a estranheza que lhes causava o fato de tantos homens adultos, barbudos e armados se submeterem à autoridade de uma criança (o monarca tinha 12 anos) e outra a respeito de ter-lhes chamado a atenção que algumas pessoas na França eram visivelmente bem-alimentadas, enquanto outras mendigavam. Diz o escritor que os visitantes indagavam como os miseráveis "podiam suportar tal injustiça sem agarrar os outros pelo pescoço ou atear fogo em suas casas".

Para pensar
A escola costuma dar, com razão, muita ênfase à sociabilidade. Afinal, essa é a essência da instituição ao reunir pessoas em torno de objetivos comuns. Mas a vida humana se faz também de reflexão e introspecção. Você já pensou que é importante deixar esse caminho aberto a seus alunos mesmo num ambiente movimentado como a sala de aula?

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